sábado, 28 de agosto de 2010

Sob o veu de Maya: tentativa de resposta aos dissabores de Vini

O Oráculo de Delfos, por Michelangelo, afresco da Capela Sistina*

Outro dia, "recebi" uma notícia muito desagradável que ocorrera com um grande amigo (em respeito, vou chamá-lo de Vini, embora ele tenha, gentilmente, permitido a transcrição de nossos diálogos e sobre o que lhe ocorreu).

Estava em casa (ah, vá! Isso é quase um pleonasmo, já que não posso sair!) e, de repente, a sua figura me veio à mente. Como somos muito ligados, percebi que isso poderia ser uma captação inconsciente, uma espécie de sincronicidade (por causa disso ele me chama "carinhosamente" de "Bruxa"). Imediatamente, liguei para ele. Caixa postal. Liguei de novo, mais tarde, e nada! Liguei para o consultório, para a casa, amigos em comum e nada! Fiquei angustiada.  Depois de muito tentar, tive uma ideia que me levou a descobrir, de fato, o que lhe acontecera e que ele tentou, a todo custo, esconder de mim, dado o processo de reabilitação.

Esperei alguns dias para falar com ele, já que estava incomunicável e eu no "claustro". Finalmente, consegui falar com Vini! Atendeu muito preocupado, pois não queria me causar sobressalto, e perguntou como havia descoberto. Narrei o que havia sentido. Ele me disse:

-"Alê, sua Bruxa! Preciso muito conversar com você, muito mesmo! Estou tão perdido, tão confuso! Você conhece a minha formação cartesiana. Sei que você também a teve, mas acho que consegue transitar bem melhor do que eu pelo imponderável".

-"Tudo bem, quando você quiser me liga pra gente conversar. Mas, olha, eu não sei se consigo transitar tão bem assim no que você chama de imponderável, viu? Não espere tanto! Ah! Também não sou bruxa; já expliquei o que aconteceu".

Dias depois, Vini me telefonou, já em casa, após o "susto". Falou sobre o que  tinha lhe acontecido e trouxe uma vasta gama de questionamentos. "Descobriu" a imprevisibilidade da vida, a falta de controle que temos sobre ela, o medo da morte, em que consistia essa grande dama, afinal. Ele precisava entender o que lhe aconteceria se morresse. Estava muito aflito, coitado! Muitas, muitas questões. Escutei atentamente e ponderei:

-"Sabe, acho que nós dois estamos recebendo uma oportunidade de desvendar o veu de Maya".

-"Me fala sobre isso?"

-"O Veu de Maya é aquilo que os hindus definem como uma ilusão, um grande erro sensório que possuímos em relação ao mundo e a si mesmo. Sabe? Andamos pelo deserto, pela vida nos valendo desse veu, acreditando sempre que estamos andando em linha reta, fazendo a melhor coisa. Por causa dele, os homens acreditam que estão no caminho certo, mas não conseguem ver o perigo que muitas vezes os espreitam na caminhada, quais sejam, caminhar para lugar nenhum e esquecer a sua verdadeira origem. Quantas vezes, Vini, eu, você, todos nós, somos desviados de nosso self, nossa essência, o que temos de mais genuíno? Acho que nós caminhamos iludidos por esse veu, o que nos faz querer enxergar o futuro sob ele, olhando através dele, sempre buscando mais e mais, e nos afastando de nossa origem. Lembra-se de Saulo de Tarso, na Estrada de Damasco, quando viu a luz? Naquele momento, Saulo, posteriormente Paulo, estava desvendando esse veu. Lembra da cegueira durante os três dias e das escamas que saíam de seus olhos? Você se recorda do que Jesus lhe disse? 'Saulo, Saulo, por que me persegues?'. Jesus não apenas exortava a trasformação dele, mas tb fazia-o retornar à sua origem divina. Isso se constituiu numa transmutação, entende?".

-"Agora me diz: como eu tiro esse veu? Eu preciso saber!".

-"Vini, primeiro conheça e entenda. Não comece a construir uma casa pelo telhado! A sabedoria, segundo Confúcio (500 a.C.), é construída por três vias: a primeira pela reflexão, a mais nobre, de acordo com ele; a segunda, pela imitação, a mais fácil; a terceira pela experiência, sendo esta a mais amarga. Você, de alguma forma, iniciou todo esse processo (não foi por acaso que você formulou essas perguntas), mas tem que ter paciência e persistência. Lembra do Dilatasti cor meum? O veu de Maya é o oposto disso. É ele que impede os avanços sobre as demais moradas da alma. Essa expansão da alma, representada aí pelo coração, é que possibilita o avanço pelo si mesmo. Lembra da inscrição no frontispício do Templo de Delfos, na Grécia antiga?"

 "Te advirto, quem quer que sejas, oh tu! Que desejas sondar os arcanos da natureza. Como esperas encontrar outras excelências se ignoras as excelências de tua própria casa? Em ti está oculto o tesouro dos tesouros. Oh homem! Conhece-te a ti mesmo… e conhecerás o Universo e os deuses".

-"Então o autoconhecimento é a chave do enigma?"

-"Sim, uma delas, talvez a principal. E não esqueça de que Santo Agostinho dizia que não somos seres humanos numa experiência espiritual, mas seres espirituais numa experiência humana. O que quero dizer, é que as coisas não são tão 'preto no branco' quanto parecem e que a vida é infinitamente maior. Quantas vezes conversamos sobre a dialética da existência? Quantas vezes eu lhe disse que deveria existir algo muito maior e que não aprendi nos bancos acadêmicos? Aí, você me dizia que deveria prestar mais atenção nas aulas de anatomia. Acho que faltou à você uma cadeira de filosofia".

-"Sim, agora entendo que existir é um processo dialético".

-"Sabe de uma coisa, Vini? A morte, como você me falou inicialmente, é algo que me intriga bastante. Acho que, não à toa, ela perpassa o meu trabalho, seja de forma objetiva ou subjetiva. Creio que farei um estudo mais aprofundado sobre ela, o que acha?"

-"Acho que você é louca".

-"É um pré-requisito..."

Vini inicia as suas incursões pelos "oráculos de Delfos" e busca retirar, paulatinamente, o veu de Maya. Começa a perceber que o imponderável traz uma experiência limite de nós mesmos e que é preciso muito mais do que neurônios e músculos para nos conhecermos (ou reconhecermos).

Deixo a composição de Fauzi Beydoun ("Além do Veu de Maya"):

"Rio de Janeiro no inverno
A brisa é fria mas o frio é eterno
Eu sigo a orla ao longo da Barra
A tarde avança mas ainda é clara
Não me é estranha essa sensação de caminhar a esmo
Seguir sem direção, só, comigo mesmo
Sem me importar em ir ou voltar
Sem ter que chegar a algum lugar
Andar, andar, até cansar

Não interessa o que aconteça
Eu não tenho pressa
Embora não pareça a vida não cessa
Eu sei, depois dessa ela prossegue ou só recomeça

Eu sinto o Sol
Eu sinto o seu calor ameno
Eu sigo só
Só, eu sigo, comigo mesmo

Eu sei que você pensa em mim e lembra de mim
Mas eu não sou assim como você vê
Como você pensa que eu possa ser

Você vê o meu corpo e pensa que sou eu
Ele não é eu ele não é meu
É só uma dádiva dada emprestada
Deus foi quem me deu por breve temporada

É só uma roupagem, densa embalagem
Que não me pertence
Aliás, nada me pertence nesse mundo
Tudo é transitório, tudo é ilusório
Ainda que se pense que o que se vê é pura realidade
Na verdade, o que se está a ver
Não é mais que um lapso
Distorcido da eternidade

O Sol se esvai
A noite cai tão sutilmente
Conforme o Sol se vai
Eu sinto a Terra girar quase que imperceptivelmente
Assim a gente vai
Seguindo rumos tão diferentes
Caminhos desiguais
Mais e mais distantes, continuamente
Mais e mais distantes, definitivamente

A cidade é um corpo disforme
Que se espalha enorme sobre a crosta terrena
Uma intrigante cena ela desperta e dorme
E deixa alguns espasmos
Ou então se consome em todo o seu marasmo
Um mundo formigante, milhões de habitantes
Todos tão imersos em seus universos
Presos aos grilhões do não saber
Das limitações de todo ser vivente dessa dimensão
Almas presas aos corpos
Sob espesso véu de ilusão
Até que estes estejam mortos
Deixarão então essa condição
E verão que corpo é só casual
Composição genética, constituição carnal
Eu poderia nascer indiano, sino africano, viver muitos anos
Pra depois morrer e voltar a nascer
Como alemão ou americano
Por que então tanta animosidade?
Se alma não tem nacionalidade
Alma não tem cor, alma não tem sexo
Esse papo de alma gêmea não tem nexo

Eu vejo o céu,
Atrás do véu de ilusão
Um doce lar,
Além do mar da imensidão".


*In: Ficheiro:DelphicSibylByMichelangelo.jpgthumb|Legend

Um comentário:

  1. Olá! Meu nome è Vivian, pesquisando sobre o véu de Maya, me deparei com seu blog, que é simplesmente sui generis, parabéns, de maneira até digamos pedagógica me fez compreender tudo(não é irônia!)Obrigado...Um grande abraço pra você, que como eu, trilhamos a estrada da busca!

    ResponderExcluir